A voz dos meus cabelos cacheados: uma questão de representatividade.

Por Valéria Martins

Esse texto é uma tentativa de resumo da ultima reunião do Coletivo Feminista Laudelina de Campos Melo onde discutiu-se o texto “Alisando o nosso cabelo” da bell hooks. Porém, este também é um desabafo que há tempos deveria ter sido feito.
bell hooks é pseudônimo de Gloria Jean Watkins, uma escritora feminista que estuda raça, classe e gênero, buscando nessa tríade os fatores que auxiliam na manutenção do sistema de dominação e opressão.
Hooks começa o texto lembrando-se da época de meninice e nos apresenta uma cena domestica, e para alguns familiar, onde as mulheres se reuniam para fazer a comida e alisar o cabelo. A autora afirma que contava os dias em que poderia se juntar as outras mulheres para que também pudesse alisar o cabelo com o pente quente e que para ela, aquele momento era visto como um rito de passagem, onde a menina torna-se mulher, pois já pode alisar o cabelo como as outras.
O mesmo ainda existe nos dias atuais, pois é inegável que o processo de alisamento do cabelo ainda é visto como um ritual de passagem, mesmo que esteja cada vez mais fácil ver crianças pequenas aderindo a todos os tipos de processos estéticos.O que não fica tão claro, mas vem mudando gradativamente graças a militância de movimentos de negras e negros, é o discurso que se tem por trás do alisamento do nosso cabelo afro, um discurso que oprime e coloca a auto estima da mulher negra em ultimo plano.
            Como hooks retrata em seu texto, temos grande participação da mídia e das empresas de cosméticos na sustentação desse discurso. A primeira porque através dele consegue manter cativa uma parcela da população que vê sua imagem ser retalhada desde que temos noticia e a segunda porque esse mesmo discurso gera lucro. Enquanto tivermos mulheres que não acreditam em seu potencial e beleza, teremos mulheres consumindo todo tipo de produto que lhes prometa alcançar um padrão aceito e legitimado pela sociedade.
Campanha do Coletivo A Coisa ta Ficando Preta para
 o Dia Internacional da Mulher Negra Latino
Americana e Caribenha
O fato que mais chamou atenção e que foi discutido em nossa reunião é a questão da representatividade: o que estamos ensinando as nossas crianças?
Tenho uma prima de 4 anos de idade, negra e com cabelos cacheados. Ela é linda e eu sou uma prima babona. Quando Lavínia nasceu eu usava o meu cabelo alisado. Depois de anos usando os cachos naturais, decidi começar a escovar e continuei assim por algum tempo, até que ela nasceu e eu me apaixonei pelos cabelos cacheados dela. Durante seus primeiros anos as brincadeiras que envolviam seus cabelos foram inúmeras, umas bem leves – mas não menos opressoras, e outras mais graves onde pediam a sua mãe para “dar um trato nos cabelos dela”. Eu fiz de tudo para que ela nunca tivesse vergonha ou raiva por ter cabelos cacheados e sempre discuti com quem quer que fosse que falasse algo sobre os cabelos dela, inclusive em nossa família. Só que eu tinha os meus cabelos alisados, então o meu discurso não estava alinhado com a minha pratica.
Quando entrei na UESC Lavínia já tinha dois anos e um cabelo de dar inveja (sem modéstia nenhuma, desculpa). Com o apoio de muitos colegas e depois de bastante leitura, pude entender que o meu cabelo liso era um disfarce da minha tentativa de seguir um padrão branco, mesmo que eu dissesse a mim mesma que era questão de gosto, e mesmo sabendo (depois das leituras) que esse discurso escondia o medo de mudar e assumir o cabelo natural, o medo de não ser aceita, continuei por mais um ano com o cabelo escovado. E durante todo esse tempo, Lavínia crescia com seus cabelos enrolados, me ouvindo dizer que eram lindos (ainda são), mas me vendo e brincando com meus cabelos lisos. Até que depois de uma última sessão de relaxamento, de várias conversas e de perceber que teria o apoio das pessoas que me cercavam, decidi por fim passar pela transição, um dos processos mais loucos e doloridos que já tive o prazer de passar.
Fiquei um ano inteiro praticamente usando coque, pois interiormente achava que não estava na hora de cortar o cabelo, que eu só deveria corta-lo quando tivesse o “tipo de rosto certo” para cabelo curto. Como a bell afirma em seu texto “a realidade é que o cabelo alisado esta vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não somos belas.” E mesmo depois de entender essa relação com o meu cabelo alisado, continuei me reprimindo pois ainda acreditava que até para ter o cabelo natural, o meu black, eu devia ter um padrão de rosto e corpo que na época eu não tinha (e ainda não tenho e nem sei se vou ter), mas a hooks continuava explicando, o que só depois eu fui entender e então aceitar. Ela diz que “[...] todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas [...]” e com tudo isso decidi aceitar os meus cachos e ser a referencia que a minha prima necessitava.
Durante a transição aprendi a cuidar do meu cabelo e a aceitar que às vezes ele não quer ficar definido e nem se importa com definição. Às vezes ele não quer ficar de um lado e sim do outro e que eu devo deixa-lo lá, do jeito que ele quer ficar. Em minhas pesquisas descobri grupos de meninas que se ajudam e se apoiam na internet e aprendi com elas e com as leituras, que nós, mulheres negras que decidem assumir seu cabelo crespo e cacheado, tem uma real necessidade de elogios, e se nós, mulheres “feitas” precisamos dessa afirmação para a nossa autoestima, imagina as crianças? Pois é, desde então não consigo ver uma mulher ou criança cacheada na rua, no ônibus, numa festa, e não dizer como o cabelo dela é incrível, como ela arrasa no black, e dar todas as dicas que eu puder sobre hidratação e afins, porque um dia eu precisei ( e ainda preciso) e tive pessoas que me deram suporte. Hoje me sinto na obrigação de apoiar todas elas.
Tenho 4 meses de cabelo cacheado. Lavínia amou quando viu o meu cabelo e às vezes quero chorar quando me lembro dela dizendo que agora o meu cabelo parece com o dela. Mas a minha luta não acabou, porque enquanto eu mostro e reafirmo que o cabelo dela é lindo, a escola, a tv e as revistas ensinam o contrario. Recentemente ela disse que quer o cabelo liso, pois liso é grande e o cabelo dela não cresce. Na verdade, ele cresce e muito, tem um volume maravilhoso, e se não cuidar com carinho dói pra pentear. Mas ele encolhe, então ela não vê o tamanho real de seu cabelo.
Dói saber que você tenta a todo custo ensinar uma criança a se amar e aceitar-se do jeito que ela é e depois ouvir dela que na revista não tem nenhuma menina negra de cabelo cacheado. E por tudo isso eu me pergunto: o que estamos deixando para as nossas crianças? Será que temos feito o suficiente para mudar esse quadro?  
Fica a reflexão e o desejo de que Lavínia compreenda que o cabelo e a cor dela são lindos, que as revistas e a tv mentem o tempo todo e que
a beleza dela é diferente porque ela é única como todo ser humano é.

O CFLCM indica o texto da bell hooks que pode ser encontrado facilmente na internet. Empodere-se, liberte-se, vamos cachear!



                         







Valéria Martins é negra, crespa e coordenadora de mulheres do DCE UESC (2016/2017). Tem 22 e compõe o CFLCM. 

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