Aborto: O diálogo com amor entre visões diferentes é possível

A complexa discussão sobre o aborto no Brasil
Por Priscila Figueiredo

O mês de março foi cheio de presentes para mim, pude participar de três espaços incríveis de discussão sobre questões sociais muito relevantes ligadas à mulher. Foram mesas em que eu representei o LAUDELINA. Dois deles ocorreram no contexto acadêmico (UESB – Itapetinga), um promovido por estudantes e outro pelo meu sindicato, que versaram, dentre outras coisas, sobre o dia internacional da mulher, a violência de gênero e a importância da organização coletiva.

O terceiro momento aconteceu ontem. Foi um evento organizado em Eunápolis pela Primeira Igreja Batista e o tema do debate era o Aborto. Que lindo a Igreja se abrir, promover isso e trazer pessoas de fora para assistir e palestrar. Que experiência fantástica. Me sinto tão grata por ter conhecido pessoas tão lindas, que me acolheram tão bem, que possibilitaram uma discussão tão estimulante, com profundidade reflexiva e respeito. Quero compartilhar algumas reflexões que trouxe na minha fala e, antes disso, gostaria de parabenizar, novamente, as pessoas que organizaram um evento tão importante como esse. Em especial, à Girlane uma pessoa tão engajada em fazer o bem e propagar o amor, inspiradora. Agradecer também porque é muito bom ouvir outras pessoas que tem uma visão diferente da nossa. É sempre uma oportunidade para aprender.  Foi muito bom ouvir o pastor Luciano e todos as/os presentes e saber o que a Bíblia fala a respeito e quais são as interpretações da Igreja.  

Bem, eu sou a Priscila, além de professora, eu sou mãe do Cícero e da Céu. E sou aquela mãe babona, que se jogou de corpo e alma na maternidade. Acho que a maternidade pode possibilitar uma transformação muito profunda na gente. Sinto que sou uma pessoa muito melhor agora. Sou muito feliz como mãe e seria legal se todas as mulheres pudessem ter uma gravidez tão desejada como foram as minhas. Eu tive condições materiais, emocionais, psíquicas e familiares para ter meus filhos. Infelizmente não é a realidade de muitas mulheres, quero falar um pouco sobre elas.

Antes disso quero destacar uma questão fundamental. Somos duas pessoas na mesa que se propõem a discutir o aborto na nossa sociedade, porque estamos preocupados com a questão, nós dois concordamos que os dados são alarmantes e queremos fazer algo em prol do assunto.  O que a gente diverge não é se somos a favor ou contra o aborto e sim como a gente acha que esse problema pode ser combatido. Por um lado, temos a defesa de que essa é uma questão criminal. De outro, temos a defesa de que isso é uma questão de saúde pública, pois além dos embriões que morrem, milhares de mulheres morrem ou ficam com sequelas para a vida toda, como psicológicas e esterilidade.

Antes de falar sobre como tratar o aborto como uma questão de saúde, pois remete a procedimentos médicos, saúde da mulher. Quero falar sobre direitos fundamentais relacionados com o tema: o direito à vida, o direito sexual e o direito reprodutivo. Todos nós temos garantidos na constituição o direito de viver, de ter liberdade sexual e de decidir se que queremos ter filhos e o tamanho da nossa prole.

O direito à vida, apesar de parecer simples, é muito complexo, pois remete a uma questão profunda ainda sem uma resposta consensual que é: quando a vida inicia?! A Bíblia por exemplo não traz uma resposta direta sobre isso. E na Biologia o óvulo e o espermatozoide são considerados células vivas, que se encontram formando uma nova reconfiguração. Assim, a vida não é criada, ela só muda. Pensando nas preocupações de teístas: quando inicia a nossa relação com Deus? Como espermatozoide/óvulo, como embrião, como feto, como bebê? A Bíblia não versa sobre isso. Acabamos recorrendo a outros campos do saber. A embriologia descreve que o feto começa a perceber, sentir, a partir da 13 semana, que é quando começa a formar o sistema nervoso. Antes disso, um embrião tem uma percepção de realidade semelhante a de um espermatozoide ou um óvulo. Será que a vida começa na concepção mesmo? Por que? E a vida em potencial dos espermatozoides/óvulos? E se assumirmos que o que nos faz seres humanos são nossos sentimentos, nossas vivências, de repente podemos assumir que a experiência humana começa a partir da 13 semana?
Outra questão vinculada ao direito à vida é a do direito não só de respirar, mas de viver com dignidade, com saúde, com amor. O direito à vida pode ser complexo em diversas situações. Meu avô, uma pessoa linda, por exemplo, depois de um AVC, passou 6 anos em uma cama, sem poder falar, sem poder comer (se alimentava via sonda), sem poder se locomover e sentindo muita dor, porque ele gemia. E minha vó idosa cuidando dele. Eu confesso que quando ele morreu eu fiquei triste, mas fiquei aliviada que aquele sofrimento tinha acabado. O direito à vida a vida não é só direito de viver, mas de viver com dignidade. No caso do aborto, temos que pensar no direito à vida do embrião, mas também no direito à vida com dignidade desse embrião depois que ele cresce num contexto de pobreza e violência. Muitas vezes pode se tornar um menino excluído socialmente ou uma pessoa envolvida com o crime, por exemplo. Muitas pessoas defendem a criminalização do aborto mas viram a cara para meninos de rua. Não tem lares suficientes para adotar estas crianças. Ainda tem os defensores da vida (apenas do embrião) que acham que bandido bom é bandido morto. Além da vida do embrião, temos o direito à vida das mulheres, uma mulher morre a cada dois dias ao se submeter desesperadamente a abortos clandestinos. A vida dessas mulheres também devem ser consideradas. “Ah, Priscila, mas ela que escolheu fazer o aborto.” Se for assim, a gente não vai se preocupar com as pessoas depressivas que cometem suicídio. Afinal a pessoa decidiu se matar?! Não pode ser assim. A vida dessas mulheres importa sim. Enfim, o que quero destacar aqui é que a questão do direito a vida não se refere só ao embrião, mas também a vida da mulher e de outras pessoas da sociedade. Mais pra frente vou falar novamente do direito a vida do embrião e da mulher.

Outro direito fundamental ligado ao tema é o direito sexual. Muitas pessoas, mesmo que isso pra religião não seja certo, iniciam sua vida sexual ainda na adolescência ou antes do casamento, isso é um fato. E o sexo é um tabu, por isso, é pouco discutido nas casas e nas escolas. Dessa forma, muitas meninas e meninos iniciam sua vida sexual e não tem suporte nem da família, nem do estado. Quem vai com 15 anos numa farmácia ou no posto pegar camisinha ou anticoncepcional? Os números de gravidez na adolescência são altíssimos. Muitos abortos acontecem na adolescência e início da juventude. E pesquisas apontam como justificativa tanto a falta de conhecimento, como o pouco acesso aos métodos contraceptivos. Além disso, em qualquer momento da vida da mulher ela pode infelizmente ter uma gravidez indesejada, seja por ineficiência dos métodos contraceptivos, seja por não ter acesso a eles, ou por sofrer algum tipo de violência. Eu, por exemplo, vim descobrir esses dias com quase 30 anos que tem vários medicamentos que cortam total ou parcial o efeito do anticoncepcional. Fiquei assim abismada como não tive acesso a isso antes, mesmo estando num ambiente com tanto acesso a informação como a universidade.

Por fim temos o direito reprodutivo que permite que as pessoas possam usar camisinha e anticoncepcional ou que os casais que não podem ter filhos, por exemplo, possam recorrer a clinicas de reprodução assistida e adotar métodos de fertilização in vitro e inseminação artificial. Nesses procedimentos são gerados vários embriões, para que se possa escolher o mais forte. Os que não são implantados são congelados e depois descartados com o tempo. E notem bem aqui tem um dado importante: existem no Brasil 150 mil embriões congelados. E de 2011 a 2015  foram descartados quase 75 mil embriões no país. Nesses casos o direito a reprodução se sobrepõe ao direito de vida dos embriões.

Outra questão importante é quem são as mulheres que abortam?
Importante diferenciar aborto espontâneo do aborto provocado. 20% a 50% de todas as gestações são interrompidas de forma espontânea. Então, é extremamente comum que as mulheres abortem mesmo sem provocar. E a vida desses embriões?

Aborto provocado
Importante destacar o perfil das mulheres que abortam. São mulheres de todas as classes sociais. Entretanto as taxas de óbitos são muito maiores entre as mulheres pobres e negras.
O médico Drauzio Varella recentemente discutiu a perspectiva social da interrupção de gestações e disse à BBC Brasil que "O aborto já é livre no Brasil. É só ter dinheiro para fazer em condições até razoáveis... Proibir o aborto é punir quem não tem dinheiro."
Gostaria de destacar novamente essa questão: para poder engravidar o direito a reprodução se sobrepõe ao da vida dos embriões. No caso da mulher desesperada o direito de decidir não ter um filho não pode se sobrepor em nenhuma hipótese a vida do embrião? É uma contradição!

Estou defendendo o aborto? Não.
Estou trazendo a reflexão de que milhares de mulheres morrem em desespero ao se submeterem a um procedimento abortivo e que proibir não está ajudando a melhorar a situação.

Qual a solução?
Tratar do problema não como uma questão criminal, mas como uma questão de saúde pública. Quem são as pessoas mais bem preparadas pra lidar com isso? A polícia ou uma equipe médica? Ahh, mas o SUS não tem estrutura. Verdade.
“Atualmente, o SUS não tem estrutura pra tratar isso como uma questão de Saúde Pública.” Tirando essas clínicas clandestinas da ilegalidade é possível ter dinheiro dos impostos convertidos para programas educativos nas escolas, em acompanhamento psicológico para as gestantes, em apoio material para quem engravida etc. Pois legalizar não é liberar e deu, é possibilitar a prevenção. Como acontece com o cigarro. É legalizado e o dinheiro dos impostos é convertido pra diminuir o consumido. O que tem sido uma realidade no país. Até porque no final essas mulheres acabam indo pro SUS de qualquer forma. Por ano, mais de 200 mil são internadas no SUS com complicações pós-aborto.
Legalizar ou descriminalizar o aborto é liberar e institucionalizar a discussão sobre o tema, é fazer ele deixar de ser um tabu, é reconhecer que o aborto é um fato. Segundo a OMS, 1 milhão de abortos ilegais são feitos por ano no país e matam uma mulher a cada dois dias.
Como diminuir o número de abortos? Criminalizar tem resolvido?! Não.
Tirar essa mulher da marginalização, do tabu. Pra gente entender quem é essa mulher. Por que ela provoca o aborto? Criar políticas públicas nesse sentido.
A ONU recomenda que o aborto seja legalizado em cinco diferentes situações: em casos de estupro, incesto, risco à saúde física e mental da mãe e também em casos de bebês deficiências consideradas graves. O risco a saúde física e mental deve ser avaliada por um médico psiquiatra. De repente, oportunidade até de reavaliar os impactos de um aborto. A mulher precisa se sentir apoiada. A defesa é nesse sentido.
Os países que legalizam o aborto não só diminuem a taxa de morte materna como também as taxas de realização desse procedimento. Altas taxas de aborto estão diretamente relacionadas com a falta de acesso à métodos anticoncepcionais.
 
Imagem: Informe da ONU sobre o aborto no mundo (2011) 

Bom, queria então finalizar meu relato destacando isso. Tratar o aborto como uma questão penal, não tem ajudado a resolver a questão, pelo contrário só faz piorar. O que nós precisamos é que a discussão avance no sentido de entender que a mulher quando tem uma gravidez indesejada ela precisa de um acompanhamento médico. Legalizar é isso. Não é banalizar, dizer que o aborto é irrestrito e liberado. Até por que o consumo de álcool, é legalizado, mas não podemos consumir em diversas situações como dirigindo. Ainda temos o caso do cigarro que é legalizado e os impostos do cigarro são convertidos para campanhas de conscientização da população sobre os riscos do consumo.
Depois da minha fala foram levantados diversos questionamentos relevantes, respeitosos. Repensar neles seria um bom exercício e acredito que daria um bom texto também. De repente escrevo um texto sobre eles também, por hoje vou ficar por aqui. Foi um dia muito bom. Fiquei encantada com as pessoas que me acolheram tão bem. Gratidão! 
















Priscila Figueiredo é professora, feminista, mãe e mais um monte de coisa. Compõe o CFLCM.


Comentários

  1. "Crer é também pensar". JHON STTOT.
    Muito bom conhecer alguém tão aberta ao outro.
    Que venham mais reflexões, Priscila Figueiredo

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